
Princesa tem sono leve
É o que sempre ouvi dizer
No entanto essa princesa
Que você vai conhecer
Dormia sono profundo
Podendo acabar-se o mundo
Que ela nem vai perceber!
Ela tinha parentesco
Com a Bela Adormecida
Mora na Pedra do Reino*
Por todos é conhecida
A princesa nordestina
Com semblante de menina
Porém madura e vivida
Cochilava um certo dia
Debaixo de um Juazeiro
Foi quando a Ema Gemeu**
Abrindo um grande berreiro
Um sinal de coisa ruim
E a princesa mesmo assim
Sonhava no seu terreiro
– Levante e vá visitar
o príncipe Dom Augusto
lá no Reino da Lonjura
rapaz belo e bem robusto
Gritou sua mãe, a rainha
Acordando a pobrezinha
Que quase morre de susto
Ela foi na carruagem
Levada por um jumento
Balançando mais que tudo
– Desse jeito eu não me aguento!
[Mas dormiu da mesma forma
pois seu sono não tem norma
e nem precisa de alento…]
Chegando lá na Lonjura
Depois de dormir bastante
Foi recebida no reino
No fim do mundo, distante
A rainha soberana
Daquele reino a tirana
A esperava hesitante:
– Para casar com meu filho
só sendo mesmo perfeita!
deve ser doce e bem meiga
se não ele não te aceita!
tem que ser bem delicada
ser quieta e recatada
para ser por ele eleita!
A princesa insatisfeita
Não gostou do que ouviu
Mas fez que “sim” com seu rosto
E a tal rainha sumiu…
Ao quarto foi conduzida
Pela cama seduzida
Se acomodou e dormiu
Só que antes a Rainha
Colocou uma semente
Entre os colchões confortáveis
Próprios pra gente dormente
Um carocinho de fava!***
Um teste que se aplicava
À princesa pretendente
Se a princesa adormecesse
E não percebesse o grão
Não teria sono leve
Como manda a tradição
Seria então descartada
E da Lonjura enxotada
De volta para o Sertão
Mas a princesa dormindo
Sonhou com a ema gemendo…
E acordou do pesadelo
– Que sonho triste e horrendo!
sonhei que a ema gemia
dormindo eu nem percebia
já tô toda me tremendo!
O Sonho foi como aviso
E ela então se levantou
Nunca teve pesadelo
Por isso se preocupou
Queria voltar pra casa
Mas só se tivesse asa
Pois a rainha a trancou
Logo lembrou Rapunzel
Sua priminha distante
Mas não tinha o cabelão
E assim ficou relutante
Como fazer pra fugir?
Foi aí que viu surgir
Uma ideia bem brilhante
Foi à cama bem forrada
Para os lençóis retirar
Foi desforrando os colchões
Pois pretendia amarrar
Cada lençol com um nó
Qual fossem corda ou cipó
Pra poder se pendurar
Pela janela saltar…
Seu plano em nada pecava
Foi quando em meio aos colchões
Viu um caroço de fava
Que coisa mais intrigante
Ela pensou num instante
– Era só o que me faltava!
Desistiu da empreitada
E esperou amanhecer
A porta foi destrancada
E com a rainha foi ter
Chegou bufando, bem brava
Com o caroço de fava
Para todo mundo ver
A rainha estava estanque
Nem podia acreditar
– Você tem o sono leve!
com meu filho vai casar
vê-se que é delicada
pois dormiu incomodada
assim pude lhe testar
– Eu sou vim te perguntar…
[Disse bem bruta a princesa]
onde está o saco inteiro
da fava da realeza?
mande botar na bagagem
que em tempos de estiagem
vai ser útil, com certeza
pois adoro comer fava
e como até me fartar
pode dizer ao seu filho
que não quero me casar
que não sou fina, nem santa
mas só não durmo sem janta
por isso vim reclamar
essa noite um pesadelo
esteve me perturbando
nunca tive sonho ruim
foi meu bucho reclamando
de deitar sem refeição
não foi por causa de um grão
que estava me incomodando!
pensei até ter ouvido
a tal da ema gemer
mas foi mesmo o meu estômago
que não teve o que comer
fique sabendo Rainha
com essa gente mesquinha
eu não quero me envolver!
e se um dia eu voltar
melhore a recepção!
pois eu viajei por dias
cheguei com a fome do cão
e me portei como dama
mas me mandaram pra cama
sem um pedaço de pão?
A rainha se calou
Pois estava envergonhada
Viu a princesa partir
Muito brava e chateada
A partir daquele dia
Ela não mais testaria
Mais nenhuma convidada
Ao invés disso, mudou
Fazendo a recepção
Como manda o figurino
E também a tradição
Oferecendo um banquete
Com fava, angu e sorvete
E amor no coração
A princesa dorminhoca
Voltou pra casa sozinha
Com duas sacas de fava
E mais uma de farinha
Dormiu bem e satisfeita
Com a fava na cama, eita!
Mas dentro da barriguinha!
Por Mari Bigio, julho de 2021
A Princesa e a Fava, de Mari Bigio, é uma releitura do Conto de Fadas Clássico “A Princesa e a Ervilha”, de Hans Christian Andersen (1835). No enredo original a delicadeza da princesa é testada com uma ervilha, colocada em meio a uma pilha de colchões. Por sua pele extremamente delicada, só uma princesa de verdade é capaz de perceber o grão, pelo incômodo que ele provoca durante o sono.
* Referência ao “Romance da Pedra do Reino”, do mestre Ariano Suassuna
** Referência à canção “Canto da Ema”, do mestre Jackson do Pandeiro
*** A Fava é uma semente semelhante ao feijão, muito comum em estados do Nordeste brasileiro.