É que eu vou passar a virada 2010-2011 na Cidade Maravilhosa. No Rio de Janeiro, que, apesar dos pesares, continua lindo. Na terra do Cristo Redentor, Garota de Ipanema, Pão-de-Açúcar sem farelo. Aí, vou levar pra lá um pouco daqui, um pouco dos versinhos rimados da nossa Literatura de Cordel, tão nordestina, armorial e universal. Vou levar pra lá um pouquinho de mim, da minha lira, dos meus vinte (e poucos) anos; E ao mesmo tempo vou me buscar um pouco, me reencontrar. Vou reencontrar familiares e amigos, e mais do que isso, reeencontrar momentos, lembranças, memórias, como a casa na Ilha de Paquetá – que tem um banquinho de praça que eu sentava com vovô, e uma prainha em frente à casa em que eu pescava Baiacú; eu era a rainha dos Baicús, e ninguém pesacava mais do que eu, esse peixe que num serve pra nada, nem pra comer – Vou reencontrar meu avô (encantado), Jorge Bigio, em cada pedaço de Rio que eu veja, meu avô que me deu de presente o amor à poesia, e eu aceitei de bom grado, esse amor (ou dom?) que carrego comigo desde a infância, desde as primeiras cartas que trocamos, nas quais ele mandava versinhos de Bastos Tigre ou de Cecília Meireles. Lembro que quando mamãe se arrumava às pessas pra tomar um avião e ir ao enterro dele, eu me vi criança, procurando as cartas num pasta escangalhada. Estavam todas lá, cada uma delas – “Alô, alô, Mariane”, ele começava sempre assim – e escolhi uma, que tinha versos (no verso), e elas foram minhas flores no tpumulo de meu avô. Meu avô que, sem saber, me despertou poeta. Salve Jorge.
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Fico feliz em saber que uma de suas últimas leituras lúcidas foi este cordel, que a neta Pernambucana escreveu, em meados de 2007:
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A Mãe que pariu o Mundo
(1)
Essa história é contada
Pela crença popular
Duma vila abandonada
Na Estrada do Pilar
Da cidade de Tetéu
Distrito de Cachumbá.
(2)
Antes era o universo
Um vão negro de dar dó
Tinha nada, só estrelas
Feitas de brilhante pó
Espalhadas pelo Vento
Que então reinava só.
(3)
O Senhor do Infinito
Cansou da escuridão
Teve idéia de fazer
A grande rebelião:
Roubou uma das estrelas
E a pôs em sua mão
(4)
Disse: estrela!oh, estrela!
Me cansei de ser sozinho
Nem o Vento é meu amigo
Pois é rei e é mesquinho
E também cansei do preto,
Que enegrece meu caminho
(5)
Sou Senhor do Infinito!
Quero muito colorir!
O universo é a tela
E de ti há de surgir
A mais prima obra-prima
O Mundo irás parir!
(6)
Nessa hora, emocionado
O Senhor lacrimejou
Uma água doce , cálida
Pela face lhe rolou
Pranto-sumo, seiva bruta
À estrela alimentou.
(7)
Esta fez-se então mulher
Com os seios volumosos
Com as ancas abarcantes
Os quadris voluptuosos
Já no âmago levava
Os pinguinhos preciosos…
(8)
O choro fertilizante
Já a tinha invadido
O seu corpo estremecia
Totalmente possuído
Por prazer e por torpor,
Por um caos enternecido.
(9)
A estrela-mulher feita
Adornou a sua testa
Com as flores lactosas
Das galáxias em festa
Recolheu-se a um canto
Pra tirar a sua sesta
(10)
Bem longe da proteção
Daquele que lhe criou
Ela descansava leve
Quando o Vento a rondou:
Sinto falta duma estrela
Acho que Ele roubou!
(11)
Amaldiçoada seja,
Tua cria ao nascer!
Vejo brilho no teu rastro!
És estrela, posso ver!
No Mundo que vai chegar
Vis desgraças hão de ter!
(12)
O Senhor ao escutar
Acudiu em seu favor
Fez do Vento simples brisa
Pra soprar quando calor
Acalmou a prenha-astral
E beijou-lhe com amor.
(13)
[Aliás, o sentimento
Que acabo de citar
Foi apenas nomeado
Muito tempo após chegar
A tão esperada cria
Como logo vou narrar…]
(14)
O feto desenvolveu-se,
Era grande e saudável,
Tão redondo e pulsante!
E a mãe de tato afável
Acarinhava a barriga
De maneira muito amável
(15)
De repente houve um estrondo
A mulher soltou um grito…
Uma água caudalosa
Pingou do ventre contrito
Cheia de sal e de vidas
(Eis o Mar aqui descrito)
(16)
Logo após a enxurrada
veio então a dor imensa
pois o sólido doía
de maneira muito intensa
a mulher acocorou
fez dos braços uma prensa
(17)
[uma música ao longe
começou-se a escutar…
canto lúdico entoado
uma flauta a tocar
o Senhor entrou em transe
começando a meditar]
(18)
E ao mesmíssimo tempo
que a mulher empurrava
quanto mais forte a dor
mas a música aumentava!
E uma ponta de luz
do seu sexo emanava.
(19)
Finalmente um grito mudo.
Era um “ai” do coração
Uma gota de suor
Gotejou na imensidão
E o Mundo foi expulso
Com enorme profusão…
(20)
As cores se misturavam
Água e terra se fundiam
Com o fogo e o ar
As vidas verdes cresciam
Do mar apontavam bípedes
Caminhantes, que caminham
(21)
A mulher aliviada
Ali mesmo adormeceu
Com o peito apertado
Que nem ela entendeu
Queria afagar o Mundo
Tê-lo sempre ao lado seu
(22)
Era o Amor que ali nascia
Com tamanha intensidade
Aliou-se à Alegria,
Ao Respeito, à Verdade,
Ao Carinho, ao Cuidado,
Calma e Serenidade.
(23)
Aliou-se às Virtudes
Que em verdade brotavam
Dos seios da Mãe do Mundo
(e) as bocas dele sugavam
o Leite cheio de Bem
e assim se saciavam
(24)
O Senhor , pra terminar
sua imensa aquarela
fez com a ponta do dedo
mais uns pontos nessa tela
fez o Sol, astro maior
bola de fogo-amarela
(25)
E assim o Mundo segue
com o Mal e com o Bem
pois a maldição do Vento
fez-se fato aqui também
mesmo que sua mãe vele
a tristeza vive aquém
(26)
Brisa negra ainda sopra
dentro do ouvido humano
empoeira corações
e sobre a paz joga um pano
faz a guerra olho a olho,
Dente a dente, mano a mano.
(27)
Quase ao fim, urge lembrar
O Mundo é bom em essência
Fruto de vontade pura
Colorindo a existência
Foi nutrido com o líquido
Da bondade em excelência
(28)
Há desgraças é verdade
Mas há muita alegria
Seus filhos conhecem dor
Mas o Amor em primazia
Reina no fundo do ser
Em cada um, cada dia.
(29)
À mulher que aqui me pôs
Dedico essa poesia
Ela em muito se parece
Com a mãe que eu descrevia
Fato é feita da brancura
Do Leite que escorria.
(30)
Com ele me amamentou
Me cuidou, me fez sorrir
Fez chorar e fez calar,
Levantar após cair
Me mostrou o alicerce
Para a vida construir.
(31)
Já vou acabando então
Versando assim o que sinto
*Entrou na boca do pato
saiu na boca do pinto
Pra terminar quem quiser
Se vire e conte mais cinco!
*(adaptação de versos ouvidos na infância, depois minha de avó, ou minha mãe, contar uma história)
Mariane Bigio Nascimento